

Lendo um dos contos de Alexandre Neverov, A Fome, fui tomado por uma constatação não muito nova, mas que me fez refletir. A fome não é seca. Tampouco molhada. É fome não adjetivada.
O brasileiro médio cultiva a crença de que a fome é seca, no Nordeste as pessoas comem menos por não terem água. Um mínimo pensamento crítico sobre o assunto rebate essa tese. Mas não se esquece, nunca, em foro intelectual íntimo, de que a seca é responsável pela morte, pela miséria. As imagens da caatinga e da palma, vegetação que nem nativa do Brasil é, remetem logo a uma piedade compartilhada típica de telespectador de Globo Repórter. Não que essa pena comprometa a integridade das pessoas. Até indica boa ética. Mas o tipo de associação feita não ajuda, definitivamente, a solucionar o problema
"O caminho, todo gretado, parecia coberto de feridas purulentas, podres e fundas. Os esquilos gritavam monotonamente. Como grandes e estranhas gotas de chuva, gafanhotos verdes de olhos redondos e fixos, caíam a seus pés."
*Alexandre Neverov - A Fome
As palavras de Neverov descrevem uma Rússia molhada, com neve recém descongelada e vegetação semi-morta. Num momento do texto, o autor ainda se refere às terras como "secas", sobre a infertilidade do solo. O detalhe visual que difere essa parte ao Nordeste do mundo da parte ao Nordeste do Brasil é a neve. A vegetação remexida pelos humanos em busca de comida é a mesma. O sentimento de derrota também. E, principalmente, o sopro de nada no estômago é compartilhado.
A atenção do tupiniquim merece ser voltada à fome em geral. Acostumou-se, nesse país, a se fazerem promessas visando o fim da fome dos irmãos nordestinos. E, quando se anuncia uma redistribuição das águas do Rio São Francisco para levar uma certa umidade ao solo deles, acredita-se que vão ter as barrigas cheias. Mas se esquece, finalmente, que quando ao Sudeste vêm, alguns continuam a passar fome. Uma molhada, úmida e purulenta fome.