terça-feira, janeiro 03, 2006

O pássaro da Madre

Caído de um dos galhos. A trepadeira era uma Madre Silva. De corpo atado. Atacado por cães não tão selvagens. Agressivos?, não! Domésticos. Típicos Canis familiaris, mas ainda com certo instinto do antecessor (e, talvez, da mesma espécie), Canis lupinus. O animal caído era um Bem-te-vi de cabeça avermelhada. Na verdade, era apenas um risco rubro. E o narrador não sabe se essa é uma característica inerente a todos os pássaros dessa espécie ou se realmente aquela rajada quase festejante era exclusiva de Júlio, nome dado pelas crianças que o acharam e salvaram dos caninos dos caninos dos caninos. Não sei se aqui tem "caninos" demais.

Quase devorado e com a asa quebrada, o bichinho foi abrigado numa caixa luminosa, ou iluminada. *Tudo depende. Em época natalina, o celeiro pode ser considerado luminoso, desde que O ungido, O Iluminado, Jesus, esteja ali representado. Um objeto luminoso é aquele que emite luz própria. E, com Júlio naquela caixa, a luz tinha uma fonte própria. Isso em se desconsiderando a lâmpida erguida a 2 metros na parede do cômodo.* Ali, sua crista desapareceu. Mas o Bem-te-vi, lânguido, costelas quebradas e más lembranças da estadia em bocas fedorentas, cheirando a, como dizem alguns, buceta de cachorra, precisava comer.

As crianças trouxeram uma papinha com cheiro de frutas. Apeteceu os ânimos do pássaro. Mas sua boca estava cerrada. Por um momento, aquelas crianças, depois do almoço, também cheiravam a buceta de cachorra (o almoço teria sido bife de fígado? Qual o cheiro do órgão desse mamífero "dócil"?). E, combinemos, depois de uma hora de contato, nenhum Júlio abriria sua boca para receber comida de ninguém! Forçado a comer, engoliu. Sentiu-se bem. Assim como os altruítas infantes! Nada melhor do que salvar. Um espírito cristão bem adotado: mentes asseadas e piedade, mesmo de diferentes.

Duas horas depois, vendo Júlio ainda magro, mas já desperto, ele foi entupido de comida. Dessa vez tudo ocorreu de forma facilitada. A boca se abriu facilmente. A tal papinha era bas boas. E os dedos das gigantes inexperientes em qualquer veterinária avançavam ao bico preto. Avançavam, avançavam. E avançaram mais enquanto o animal gostava. E ele parou de gostar. A boca, contudo, continuou fixa. Tentou alguma expressão. Mas nem o médico veterinário entenderia os músculos "subpenosos" trincando de tanta dor. Penosa situação. Num ato final, defecou na mão de um dos bons samaritanos. Eles apenas se limpou. Soltou o bico do Bem-te-vi, que despencou engasgado. Primeira morte vista e causada pelas crianças. Não entenderam, tampouco se importaram. Bem-que-viram a rabanada do Ano Novo ainda pousada sobre a mesa. Dia 2 de janeiro, ainda. "Bem-te-vi-morto". Agora brincavam. A manjedoura perdera seu "eu" luminoso. O pássaro nem voou mais. Caído, morto, tornou-se mais um humano.

4 Comments:

Blogger Amanda said...

Caído, morto, tornou-se mais um humano. --> Me lemra a linda cena de As Horas... Virginia Woolf e o pássaro...

Lindo texto... Parabéns... =-)

terça-feira, janeiro 03, 2006 1:57:00 AM  
Blogger Jean Souza said...

félipe, o texto tah MUITO BOM! pena q ficou um pouco extenso. é difícil, no nosso mundinho corrido, atrair sem ser breve. mas é bom correr o risco também. (bem, eu tô tentando ser breve, e vou continuar tentando, nos meus posts). fico sempre pensando na paciência das pessoas...

o texto ficou ótimo. é claro q eh crítico, mas o humor (acho q vc nem calculou a dose, neh?) eh q dah o toque especial. ficou ótimo. ri horrores.

a historinha aconteceu mesmo ou eh pura ficção???

terça-feira, janeiro 03, 2006 2:11:00 AM  
Anonymous Anônimo said...

Oh, eu já fiz isso... Eu já matei de pura bondade e deixei pra lá, de puro desleixo.

Já dizia aquela banda, "love hurts", e a outra que "love bites".

terça-feira, janeiro 03, 2006 12:20:00 PM  
Blogger Juliana Paixão said...

Oi, olha eu aqui....fiz um pra mim tbém..rsss Dps passa lá... só não garanto q vá continuar com ele..rsss

terça-feira, janeiro 03, 2006 4:43:00 PM  

Postar um comentário

<< Home